Celebrando Deus

Contemplando

“Diante de mim via sempre o Senhor…” (At 2.25)
Esta é a última parte da citação que poderia definir corretamente a natureza e objetivo do ministério deste pequeno jornal.

Não é para propagar um ensinamento, como tal, nem para constituir uma nova comunidade, sequer para apoiar um “movimento” em particular, mas verdadeiramente e unicamente para trazer e manter o Senhor Jesus em vista e em crescente plenitude: este é o seu objetivo. Destina-se a se ocupar com o propósito de longo alcance de Deus acerca de seu Filho, Jesus, nosso Senhor.

Neste contexto, e de acordo com a citação acima de Davi, é impressionante e instrutivo observar quão grande influência tem na vida, a questão de ver, ou contemplar.

Podemos verdadeiramente dizer que uma grande parte do que somos, e, portanto, do efeito que temos neste mundo, é o resultado da nossa visão. Há muita verdade no ditado que diz que nós nos tornamos como aquilo sobre o qual nossos olhos estão especialmente focados. Isto pode ser visto em características nacionais. Regiões áridas, austeras, duras, frias e incolores do mundo de fato produzem pessoas duras e austeras. Nas regiões coloridas, verdes, macias, quentes e férteis, onde a natureza não deve ser coagida, mas apenas guiada, são produzidas pessoas coloridas e descontraídas com naturezas mais artísticas e sentimentais. Arredores pequenos e restritos produzem pequenas mentes, com interesses e entendimento limitados. Os moradores nas regiões amplas e dimensões enormes são aventureiros, ousados e generosos, com empreendimentos quase audaciosos. Esta é uma regra geral com pontuais exceções e particulares variações. Ela aponta para o efeito causado sobre um indivíduo ou uma comunidade, consciente ou inconscientemente, daquilo que está sempre diante de seus olhos.

A Bíblia leva muito em conta este fato, e o transporta para todos os seus paralelos na vida espiritual. Na verdade, ela coloca todos os estágios e fases da vida cristã sobre a base do ver.

O início da vida cristã é o resultado de “contemplar o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (João 1:29).

Havia vários objetos de sacrifício no grande sistema tipológico de Israel, mas o cordeiro era o centro de tudo. Sua história como nação começou com o cordeiro pascal. Eles sempre foram lembrados disso, pela celebração da Páscoa anual. Olhavam para o cordeiro suportando o seu pecado e julgamento, apesar de em si mesmo ser “sem mancha ou defeito”, e sabiam que era o cordeiro que Deus apontou e proveu para que contemplassem.

O Novo Testamento traz o Cordeiro de Deus em vista e apela para contemplá-lo. Essa palavra significa mais do que “dar uma olhada”, “olhar de relance para Ele”. Significa, “fixar seu olhar sobre ele”. É o olhar de necessidade, de busca, de desespero, se quiser.

“Olhai para mim, e sereis salvos, vós, todos os limites da terra” (Isaías 45:22)

Então, a Bíblia coloca sobre a mesma base toda a questão de nossa transformação progressiva.

“Contemplando… somos transformados… na sua própria imagem” (2 Coríntios. 3:18)

Não é um esforço para formar uma imagem mental de Jesus. Nos escritos apostólicos Ele é apresentado a nós, e para nós, a partir de vários pontos de vista vitais, por Aquele que O conhece melhor e mais completamente.

Em “Romanos”, por exemplo, Ele é amplamente apresentado como a justiça essencial de Deus, provida onde nenhum outro foi encontrado, sem o qual não há esperança para o homem ou a criação.

Esta não é uma introdução aos livros do Novo Testamento, mas aponta para Ele e é uma indicação de como, à medida que somos encontrados olhando para Ele, e não para os escritores – uma influência em direção à Sua semelhança se seguirá em nós.

O que é verdade, no princípio, sobre o início e o progresso da vida cristã também é mostrado relacionado à sua consumação.

“Amados, agora, somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que haveremos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é.” (1 João 3:2)

Há mais textos que mostram que esse final “contemplar” terá um efeito na consumação, colocando os toques finais na obra de “ser conformado a Sua imagem”. Assim, do início ao fim, a nossa salvação, transformação e glorificação são vitalmente relacionadas com os nossos olhos, a nossa visão espiritual. “Os puros de coração verão a Deus” (Mt.5:8).

Mas, quando me propus a escrever estas linhas, eu tinha outras coisas em mente também. Nossos olhos são muito confrontados com condições que são contrárias a Cristo, e isso constitui um campo de batalha para os nossos olhos.

A Bíblia contém muitos exemplos dos resultados deploráveis do uso errado dos olhos. Pense em Eva, em Davi, nos dez espias em Cades-Barnéia, em Sansão (que viu uma mulher para sua ruína espiritual, e, eventualmente, perdeu seus olhos físicos), e assim por diante.

Não é verdade que muito do que nos lamentamos no cristianismo evangélico ocorre devido a esse uso errado dos olhos? Nossas livrarias religiosas estão equipadas com os frutos amargos e ácidos do tempo e energia gastos na busca e exposição das fraquezas, falhas ou faltas e de tudo mais que é contrário àquilo que é de verdadeiro valor. Isso pode se tornar uma predisposição, uma obsessão, uma mania, e uma verdadeira ameaça.

Nós olhamos para os homens, para as pessoas. Nós olhamos para os ministérios. Nós olhamos para a obra cristã, e em tudo marcamos os aspectos humanos e falhos. Estes se tornam nossos focos, e o resultado é que o que é realmente valioso, e – talvez – de maior valor, é eclipsado por nós, por aquilo que se tornou tudo para nós.

Nada escapou este uso enferrujado dos olhos, até aquilo que vem de Deus. Nós já vimos servos grandemente usados por Deus terem o seu ministério cortado de milhares de crentes apenas por causa do foco sobre um desvio – ou desvio imaginário – em algum ponto comparativamente pequeno, fora da aceitação comum. O declínio do ministério em algumas das nossas grandes convenções pode ser atribuído a isso mesmo. Ninguém teria mais zelo pela verdade, toda a verdade e nada além da verdade, do que nós, mas estamos igualmente zelosos para que, o padrão de julgamento não seja a tradição, ou sistemas rígidos dos homens, mas sim, a medida de Cristo.

Cristo é o critério, do início ao fim, e não os julgamentos dos homens. Vejo eu, ou melhor, posso eu ver o Senhor, se eu estou realmente olhando para Ele? Se assim for, esse deve ser o meu ponto focal. Se Ele existe, há esperança para o resto, e eu devo deixar isso com ele.

Como é fácil de cantar levianamente: “Volte seus olhos para Jesus”, e esquecer que é sempre a partir das ´coisas da terra’.

“Diante de mim via sempre o Senhor…”

Por amor a tudo que é precioso para Ele, que isso possa ser verdade a nosso respeito!

Publicado pela primeira vez como um editorial na revista “A Testemunha e um testemunho”, em setembro-outubro de 1959, vol. 37-5
Origem: “Beholding”