Celebrando Deus

Crucificado em Mim

“O Trabalho da Cruz nos Liberta do Mundo”

Separação para Deus, separação do mundo, é o primeiro princípio do viver cristão. Na revelação de Cristo feita a João, foram mostrados dois extremos irreconciliáveis, dois mundos que moralmente eram pólos opostos. Ele foi primeiro transportado no Espírito para um deserto, para ver Babilônia, mãe das meretrizes e abominações da terra (Ap. 17.3). Foi então levado no mesmo Espírito para uma grande e alta montanha, para dali contemplar Jerusalém, a noiva, a esposa do Cordeiro (Ap 21.10). O contraste é claro, e dificilmente poderia ser mais explicitamente declarado. Quer sejamos Moisés ou Balaão, para termos a visão que Deus tem das coisas, precisamos ser levados como João para um pico de montanha. Muitos não podem ver o plano eterno de Deus, ou se o veem entendem-no apenas com árida doutrina, porque se satisfazem em permanecer nas planícies. Pois a compreensão jamais pode tocar-nos; só a revelação o faz. Do deserto podemos ver algo da Babilônia, porém necessitamos de revelação espiritual para ver a Nova Jerusalém de Deus. Uma vez que a avistemos, jamais seremos os mesmos novamente. Portanto, como cristãos nós confiamos tudo a essa abertura de olhos, mas para experimentá-la precisamos estar preparados para renunciar aos níveis comuns e subir.

A meretriz Babilônia é sempre “a grande cidade” (Ap. 16.19, etc.), com ênfase em seus feitos de grandeza. A Nova Jerusalém é, ao contrário, “a cidade santa” (Ap. 21.2, 10), com a ênfase correspondente em sua separação para Deus. Ela é “de Deus” e está preparada para “seu esposo”. Por essa razão, ela tem a glória de Deus. Essa é uma questão de experiência para todos nós. Santidade em nós é o que é de Deus, o que está totalmente separado para Cristo. Segue a regra de que somente o que se originou do céu retorna para lá; pois nada mais é santo. Retire-se esse princípio de santidade, e estamos instantaneamente em Babilônia. Dessa forma, sucede que a muralha é o primeiro aspecto da cidade em si que João menciona em sua descrição. Há portas fazendo provisão para as obras de Deus, porém a muralha tem prioridade. Pois, repito, separação é o primeiro princípio da vida cristã.

Se Deus quer Sua cidade com suas medidas e Sua glória naquele dia, então precisamos construir aquela muralha nos corações humanos agora. Na prática isto quer dizer que devemos guardar como precioso tudo o que é de Deus, e recusar e rejeitar tudo o que é da Babilônia. Com isso, não estou me referindo à separação entre cristãos. Não ousamos excluir nossos próprios irmãos, mesmo quando não podemos participar de algumas coisas que eles fazem. Não, devemos amar e receber nossos irmãos cristãos, mas sermos em princípio inflexíveis em nossa separação do mundo. Em seus dias, Neemias conseguiu reconstruir a muralha de Jerusalém, mas apenas enfrentando grande oposição. Pois Satanás odeia a separação. Ele não pode suportar a separação do homem para Deus. Por isso, Neemias e seus companheiros armaram-se, e assim equipados para a  guerra, assentaram pedra por pedra. Este é o preço da santidade, para o qual devemos estar preparados.

Pois certamente precisamos construir. O Éden era um jardim sem muralhas artificiais para conservar fora os inimigos; por isso Satanás pôde entrar. Deus pretendia que Adão e Eva “o guardassem” (Gn. 2.15), eles próprios constituindo-se numa barreira moral contra ele. Hoje, por meio de Cristo, Deus planeja um Éden no coração de Seu povo redimido, ao qual, em triunfante realidade, Satanás finalmente não terá qualquer acesso moral. “Nela nunca jamais penetrará coisa alguma contaminada, nem o que pratica abominação e mentira; mas somente os inscritos no livro da vida do Cordeiro”.

Muitos de nós concordaríamos que foi dada uma revelação especial da Igreja de Deus ao apóstolo Paulo. De  igual modo, sentimos que Deus deu a João uma compreensão especial da natureza das coisas do mundo. Na verdade, kosmos é peculiarmente uma palavra de João. Os outros evangelhos usam-na apenas quinze vezes.  Mateus nove, Marcos e Lucas três vezes cada, enquanto Paulo emprega-a 47 vezes em oito cartas. Mas João usa-a 105 vezes ao todo, 78 em seu evangelho, 24 em suas epístolas e mais três vezes em Apocalipse. Em sua primeira epístola, João escreve: “porque tudo que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não procede do Pai, mas procede do mundo” (2.16). Nestas palavras que refletem com tanta clareza a tentação de Eva (Gn 3.6), João define as coisas do mundo. Tudo o que pode ser incluído na concupiscência ou desejo primitivo, tudo o que excita ambição gananciosa, e tudo o que desperta em nós a soberba ou deslumbramento da vida, todas essas coisas são parte do sistema satânico. Talvez quase não seja necessário considerar mais detalhadamente os dois primeiros, mas contemplemos o terceiro por um momento. Tudo o que provoca soberba em nós, é do mundo. Proeminência, riquezas, realizações, isto o mundo aplaude.

Os homens ficam legitimamente orgulhosos do sucesso. Contudo, João denomina tudo o que traz essa sensação de sucesso como “do mundo”. Portanto, cada sucesso que experimentamos (eu não estou sugerindo que deveríamos ser fracassados) reclama de nós, por um instante, a humilde confissão de sua pecaminosidade inerente, pois onde quer que tenhamos encontrado o sucesso, até certo ponto entramos em contato com o sistema mundial. Sempre que sentimos complacência quanto a alguma realização, podemos saber de imediato que tocamos o mundo. Podemos saber, também, que nos colocamos sob o julgamento de Deus, pois não temos já concordado que o mundo todo está sob julgamento?

Agora (e vamos tentar assimilar este fato) aqueles que percebem isso e confessam sua necessidade estão desse modo protegidos. Mas o problema é, quantos de nós estão conscientes disso? Mesmo aqueles dentre nós que vivem na separação de suas casas particulares estão tão propensos a serem presas da soberba da vida, quanto os que têm grande sucesso público. Uma mulher em uma modesta cozinha pode tocar o mundo e sua complacência mesmo enquanto estiver preparando a refeição diária ou entretendo convidados. Toda glória que não é para a glória de Deus é vanglória, e são surpreendentes os sucessos insignificantes que podem causar vanglória. Onde quer que encontremos o orgulho, encontramos o mundo, e há uma perda imediata de nosso relacionamento com Deus. Oh, que Deus nos abra os olhos para vermos claramente o que é o mundo! Não apenas as coisas más, mas todas aquelas que nos afastam tão gentilmente de Deus, são unidades daquele sistema que é antagônico a Ele. Contentamento na realização de um trabalho tem o poder de se colocar de imediato entre nós e Deus. Pois se é soberba da vida e não o louvor a Deus que desperta em nós, podemos saber com certeza que tocamos o mundo. Dessa forma, há uma necessidade constante de vigiar e orar, se quisermos manter pura comunhão com Deus.

Qual é então o modo de escapar a essa cilada que o diabo colocou para enganar o povo de Deus? Primeiro, digo enfaticamente que não escaparemos pelo fato de fugirmos. Muitos pensam que podemos escapar do mundo, procurando abster-nos das coisas do mundo. Isso é tolice. Como poderíamos nós escapar ao sistema do mundo usando o que, afinal de contas, é um pouco mais do que métodos mundanos? Permita-me recordar-lhes as palavras de Jesus em Mateus 11.18, 19: “Pois veio João, que não comia nem bebia e dizem: tem demônio. Veio o Filho do homem, que come e bebe, e dizem: Eis aí um glutão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores!” Alguns pensam que João Batista nos oferece uma receita para escapar ao mundo, mas “não comia nem bebia” não é cristianismo. Cristo veio comendo e bebendo e isso é cristianismo! O apóstolo Paulo fala das “ordenanças do mundo”, e define-as como “não manuseies isto não proves aquilo, não toques aquilo outro”  (Cl 2.20, 21). Assim, a abstinências é nada mais nada menos do que mundana, e que esperança há, no uso de ordenanças mundanas, de escapar do sistema do mundo? Contudo quantos cristãos sinceros estão renunciando a toda sorte de prazeres mundanos na esperança de assim ficarem libertos do mundo! Você pode construir uma cabana de eremita em algum lugar remoto, pensando escapar ao mundo retirando-se para lá, mas o mundo o seguirá até mesmo ali. Seguirá sua pista e o encontrará, não importando onde você se esconda. Nossa libertação do mundo começa, não com a nossa desistência disso ou daquilo, mas com o enxergarmos com os olhos de  Deus, que é um mundo sob sentença de morte, como na ilustração com a qual abrimos este capítulo, “caiu, caiu a grande Babilônia!” (Ap 18.2). Agora uma sentença de morte está sempre passada, não sobre os mortos, mas sobre os vivos. E em certo sentido o mundo é uma força viva hoje, perseguindo e procurando incansavelmente seus vassalos.

Mas, embora seja verdade que quando é pronunciada a sentença a morte ainda pertence ao futuro, ainda assim é certa. Uma pessoa sob sentença de morte, não tem futuro além dos limites de uma cela condenada. Do mesmo modo o mundo estando sob sentença, não tem futuro. O sistema mundial ainda não foi “golpeado”, como  dizemos, e terminado por Deus, mas o golpeamento é uma questão já decidida. Faz toda diferença para nós se vemos isso. Algumas pessoas procuram a libertação do mundo no ascetismo e como o Batista, não comem nem bebem. Isso hoje é budismo, não cristianismo. Como cristãos nós comemos e bebemos, mas o fazemos na compreensão de que o comer e beber pertencem ao mundo, e, como eles estão sob a sentença de morte, não tem poder sobre nós. Suponhamos que as autoridades municipais de Shangai decretem que a escola onde você está empregado deve ser fechada. Assim que toma conhecimento dessa notícia, você percebe que não há futuro naquela escola para você. Continua trabalhando lá por um tempo, mas não constrói nada para o futuro ali. Sua atitude para com a escola muda no momento em que fica sabendo que deve ser fechada. Ou, para usar outra ilustração, suponha que o governo decida fechar certo banco. Você se apressaria a depositar nele uma grande importância de dinheiro para salvá-lo do colapso? Não, você não depositaria ali nem mais um centavo, desde que saiba que não tem futuro. Você não deposita nada, porque não espera nada dele. E podemos com justificativa dizer que o mundo está sob uma ordem de fechamento. Babilônia caiu quando seus defensores guerrearam com o Cordeiro, e quando por Sua morte e ressurreição Ele os superou como o Senhor dos senhores e Rei dos reis (Ap 17.14). Não há futuro para ela. Uma revelação da cruz de Cristo implica para nós na descoberta desse fato, que através dela tudo o que pertencia ao mundo está sob sentença de morte. Continuamos vivendo e utilizando as coisas do mundo, mas não podemos construir qualquer futuro com elas, pois a cruz destruiu toda esperança que tínhamos nelas. A cruz de nosso Senhor Jesus podemos na verdade afirmar, arruinou nossas expectativas quanto ao mundo, não temos nada por que viver nele. Não existe um  verdadeiro caminho de salvação do mundo que não principie com tal revelação. Precisamos apenas tentar escapar do mundo fugindo dele, para descobrir o quanto nós o amamos, e o quanto ele nos ama. Podemos fugir para onde quisermos para evitá-lo, mas ele certamente nos encontrará. Mas perdemos inevitavelmente todo interesse pelo mundo, e este perde seu poder sobre nós, assim que descobrirmos que o mundo está condenado. Compreender isso é ser automaticamente cortado de toda economia de Satanás. No final de sua carta aos Gálatas, Paulo afirma isso muito claramente. “Mas longe esteja de mim gloriar-me senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim, e eu para o mundo” (Gl 6.14). Notou algo marcante quanto a este versículo? Com relação ao mundo, ele fala dos dois aspectos da obra da cruz já mencionados em nosso capítulo anterior. “Fui crucificado para o mundo” é uma afirmativa que vemos ser facilmente adaptável à nossa compreensão de estarmos crucificados com Cristo, como definido em passagens tais como Romanos 6. Mas aqui também está dito: especificamente que “O mundo foi crucificado para mim”.

Quando Deus vem a você e a mim com a revelação da obra terminada de Cristo, Ele não apenas mostra a nós  mesmos crucificados lá na cruz, mostra-nos também o nosso mundo ali. Se você e eu não podemos escapar ao julgamento da cruz, então nem o mundo pode escapar a esse julgamento. Será que eu realmente já compreendi isso? Essa é a questão.

Quando eu compreendo, não tento repudiar um mundo que amo, vejo que a cruz o repudiou. Não tento escapar a um mundo que se agarra a mim; vejo que através da cruz eu escapei. Como tantas outras coisas na vida cristã, a forma da libertação do mundo vem a ser uma surpresa para muitos de nós, pois está em grande desigualdade com os conceitos naturais do homem. O homem procura resolver o problema do mundo afastando-se fisicamente do que ele considera a zona de perigo. Mas a separação física não traz a separação espiritual; e o contrário também é verdadeiro, que o contato físico com o mundo não compele à captura espiritual pelo mundo. Escravidão  espiritual ao mundo é fruto de cegueira espiritual, e a libertação é o resultado de ter nossos olhos abertos. Não importa quão próximo possa ser externamente o nosso contato com o mundo, somos libertos do seu poder quando verdadeiramente compreendemos sua natureza. O caráter essencial do mundo é satânico; é inimizade para com Deus. Compreender isso é encontrar libertação. Permita-me perguntar-lhe: qual a sua ocupação? Mercador? Médico? Não se afaste dessas vocações. Simplesmente, escreva: o comércio está sob sentença de morte. A medicina está sob sentença de morte. Se fizer isso com sinceridade, sua vida será mudada dai em diante. No meio de um mundo sob julgamento por sua hostilidade a Deus, você saberá o que é viver como alguém que verdadeiramente O ama e teme.

Fonte: O Mensageiro das Boas Novas – Maio 2014 Ano XVI n° 228